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Análises práticas e atualizadas sobre Direito do Trabalho Empresarial, Compliance e Gestão Jurídica — para transformar risco em estratégia.

A Impossibilidade de Cumprimento da Cota Legal de Pessoas com Deficiência em Atividades de Risco

Eliane Kozan[1]

Introdução

A inclusão de pessoas com deficiência (PCDs) e reabilitados no mercado de trabalho representa um avanço civilizatório previsto na Constituição Federal de 1988, que assegura a dignidade da pessoa humana, a igualdade material e a vedação à discriminação. Nesse sentido, o art. 93 da Lei nº 8.213/1991 instituiu a chamada lei de cotas, obrigando empresas com 100 ou mais empregados a preencher de 2% a 5% de seus cargos com PCDs ou reabilitados.

Apesar de seu inegável caráter social e inclusivo, a aplicação prática desse dispositivo revela sérias dificuldades em setores específicos da economia, especialmente nas empresas que desenvolvem atividades de risco. Nessas hipóteses, o cumprimento literal da lei pode se tornar inviável, exigindo reflexão jurídica sobre a necessidade de ajustes normativos, políticas públicas mais eficazes e diferenciação proporcional entre ramos de atividade.

 

Proteção às pessoas com deficiência e reabilitados

O objetivo da lei de cotas é garantir que PCDs e reabilitados tenham acesso ao mercado de trabalho em condições de igualdade, superando barreiras históricas de exclusão. Trata-se de um mecanismo que visa concretizar a proteção constitucional às minorias, a inclusão social e a promoção da cidadania.

Contudo, a proteção legal não deve se limitar ao acesso ao emprego: ela deve abranger também a segurança, saúde e integridade física do trabalhador. Inserir pessoas com deficiência em funções incompatíveis com sua condição pode, ao contrário de protegê-las, expô-las a riscos desnecessários. Assim, o desafio está em compatibilizar inclusão com preservação da dignidade e da segurança no ambiente laboral.

A falha da política nacional de integração da pessoa com deficiência

Apesar da previsão constitucional e infraconstitucional, a política nacional de integração da pessoa portadora de deficiência ainda é deficiente. Falta investimento estatal em programas de habilitação e reabilitação profissional capazes de preparar adequadamente essas pessoas para ocupar postos de trabalho em diferentes setores econômicos, inclusive os de maior risco.

Essa falha estrutural transfere para o empregador a responsabilidade integral de cumprir a cota, sem que haja suporte suficiente para viabilizar a formação e a intermediação de mão de obra. Cria-se, assim, uma exigência legal muitas vezes dissociada da realidade prática do mercado.

 

Art. 93 da Lei 8.213/1991 e a impossibilidade de cumprimento pelos empregadores

O art. 93 da Lei 8.213/1991 estabelece cotas fixas, variando entre 2% e 5% conforme o número de empregados. O problema é que a norma não diferencia ramos de atividade econômica, tratando de maneira uniforme empresas que operam em contextos completamente distintos — desde escritórios administrativos até indústrias pesadas ou mineradoras.

Em setores de risco acentuado, determinadas funções não comportam a presença de PCDs, sob pena de se violarem normas de segurança do trabalho. Exigir o cumprimento integral da cota, sem considerar a especificidade das atividades, revela-se um ônus desproporcional ao empregador e, em certos casos, uma medida contraproducente para a própria proteção da pessoa com deficiência.

A necessidade de flexibilização e diferenciação entre empresas

Diante desse cenário, impõe-se a discussão sobre a flexibilização da lei de cotas. É preciso que a legislação ou regulamentação permita a diferenciação de acordo com:

  • o ramo de atividade econômica;
  • o grau de risco inerente às funções;
  • a compatibilidade entre a deficiência e as exigências da função.

Essa diferenciação não significaria esvaziar a lei, mas torná-la mais justa e eficaz, garantindo que a inclusão ocorra em condições reais de segurança e dignidade.

Ausência de programas de habilitação e a excludente de responsabilidade do Estado

Outro ponto relevante é a ausência de programas eficazes de habilitação e reabilitação conduzidos pelo Estado. Sem esse suporte, as empresas enfrentam dificuldades para encontrar candidatos aptos às funções oferecidas. Essa omissão estatal gera uma sobrecarga indevida para o empregador, que fica sujeito a multas e autuações, ainda que tenha empreendido esforços para contratar.

Nesse contexto, parte da doutrina sustenta que deve haver uma excludente de responsabilidade do empregador quando restar comprovado que a impossibilidade de cumprimento decorreu de falha do próprio Estado em implementar políticas públicas adequadas. A empresa não pode ser penalizada por uma obrigação cujo adimplemento depende de fatores externos à sua esfera de atuação.

Possíveis soluções propostas

  • Flexibilização legal/regulamentar: criação de normas que identifiquem quais atividades e cargos podem ser ocupados por PCDs, respeitando o grau de risco.
  • Critérios claros para fiscalização: parâmetros objetivos que avaliem o esforço real da empresa em recrutar e a efetiva disponibilidade de candidatos.
  • Incentivos e programas governamentais: investimentos em reabilitação, habilitação e capacitação específica para ampliar a compatibilidade entre vagas e candidatos.
  • Declaração de impossibilidade ou excludente de responsabilidade: reconhecimento, mediante prova documental e pericial, de que determinadas funções não comportam PCDs ou de que houve tentativa frustrada de cumprimento da cota, afastando a responsabilidade do empregador.

 

Conclusão

A lei de cotas é um instrumento essencial de inclusão, mas sua aplicação uniforme a todos os setores ignora realidades distintas, especialmente as empresas que desenvolvem atividades de risco. A ausência de políticas públicas eficazes de habilitação e reabilitação agrava o problema, impondo aos empregadores uma responsabilidade desproporcional e, em muitos casos, inexequível.

Diante disso, torna-se imprescindível repensar a legislação, adotando critérios diferenciados por ramo de atividade, além de reforçar a atuação do Estado na formação e na intermediação de mão de obra. Somente com essa flexibilização, acompanhada de programas de qualificação, será possível equilibrar os princípios da inclusão social, proteção à pessoa com deficiência e segurança do trabalho, assegurando que a lei cumpra seu propósito de forma justa e efetiva.


[1] Advogada Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), e pela ESMAFE PR Especialista em Direito Previdenciário e Processo Previdenciário.

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