Frederico Silva Hoffmann[1]
A Lei 8009/90, que estabelece e regulamenta a impenhorabilidade do bem de família, representa um marco legal essencial para a proteção do núcleo familiar no cenário jurídico brasileiro. Criada com a finalidade de resguardar a estabilidade e a dignidade das famílias, a legislação delimita as circunstâncias em que um imóvel pode ser considerado como “bem de família” e, portanto, protegido contra penhoras.
Segundo o artigo 5º desta lei, o requisito fundamental para que um imóvel seja passível de proteção como bem de família é a sua utilização como local permanente de habitação do casal ou unidade familiar. Essa condição reflete a preocupação legislativa em assegurar que a moradia, elemento crucial para o desenvolvimento e bem-estar da família, seja preservada de eventuais turbulências financeiras.
No entanto, é importante observar que a proteção conferida pelo bem de família não é absoluta. O artigo 1º da lei estabelece que o imóvel protegido não pode responder por dívidas, exceto nos casos expressamente previstos no artigo 3º. Dessa forma, a impenhorabilidade do bem de família cede espaço em situações específicas, com o intuito de equilibrar os interesses do credor e a salvaguarda do lar.
As exceções elencadas no artigo 3º destacam circunstâncias em que a proteção do bem de família pode ser afastada. São elas:
- Dívida de Financiamento: Caso o imóvel tenha sido adquirido por meio de financiamento para construção ou compra, a impenhorabilidade não se aplica nesse contexto específico.
- Devedor de Pensão Alimentícia: O não pagamento de pensão alimentícia pode resultar na penhora do bem de família, visando garantir o sustento de dependentes.
- Dívida de IPTU, Taxas e Contribuições de Condomínio: A legislação permite a penhora do imóvel em casos de inadimplência com impostos municipais, taxas ou contribuições condominiais.
- Imóvel Hipotecado: Se o imóvel estiver sob hipoteca, ele pode ser objeto de penhora para satisfazer a dívida garantida pela hipoteca.
- Recursos Originados de Atividades Criminosas: A impenhorabilidade não abrange imóveis adquiridos com recursos provenientes de crimes, sendo passíveis de penhora em processos criminais para ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.
- Fiador em Contrato de Locação: O bem de família de um fiador que assumiu obrigação em contrato de locação pode ser penhorado para garantir o cumprimento das obrigações locatícias.
A Lei 8009/90, ao estabelecer essas exceções, busca equilibrar a proteção da moradia familiar com a necessidade de garantir a satisfação de obrigações legítimas. A ponderação desses interesses visa preservar a dignidade da família enquanto assegura a efetividade das relações jurídicas. Em última análise, a legislação reflete a complexidade inerente à interação entre direitos individuais e responsabilidades financeiras no contexto familiar.
A Segunda Turma do Tribunal Superior do Trabalho recentemente protagonizou um caso emblemático ao afastar a penhora de um apartamento situado à beira da orla de Balneário Camboriú (SC). O imóvel, sendo o único da família da devedora, foi considerado impenhorável, reforçando a proteção destinada aos bens essenciais à residência familiar.
O imbróglio teve início quando o apartamento, juntamente com sua vaga de garagem, ambos pertencentes à sócia de uma empresa, foi arrematado por outra empresa por expressivos R$ 687 mil durante a fase de execução de uma ação trabalhista. Ao contestar a arrematação, a proprietária argumentou que o imóvel é sua morada desde 2014, configurando-se como seu único bem impenhorável.
Contudo, as instâncias inferiores da Justiça do Trabalho do Paraná discordaram dessa alegação, alegando que a sócia não comprovou sua residência no apartamento no momento da primeira tentativa de citação pelo oficial de justiça. Para essas instâncias, esse requisito era crucial para a impenhorabilidade, e como a sócia havia se mudado para o apartamento após a citação, a arrematação foi considerada regular.
No Tribunal Superior do Trabalho, a proprietária refutou a necessidade de residir no imóvel antes do processo para sua proteção como bem de família. A relatora do caso, ministra Liana Chaib, concordou com esse argumento, destacando a ausência desse requisito na legislação. Ela enfatizou que a parte contrária deveria ter indicado outros imóveis da sócia, o que não aconteceu. Assim, ficou evidenciado que ela de fato reside no local, não possuindo outros imóveis, resultando na invalidação da arrematação do apartamento.
Entretanto, a proteção não se estendeu à vaga de garagem, situada no mesmo edifício e com matrícula própria no Registro de Imóveis. A ministra Chaib ressaltou a jurisprudência consolidada do TST, afirmando que a vaga não pode ser considerada bem de família nesses casos.
A decisão, unânime entre os membros da Segunda Turma, lança luz sobre a delicada balança entre o direito à propriedade, a proteção à família e a execução de dívidas trabalhistas. O caso serve como um lembrete de que, mesmo diante de argumentos legais, cada situação demanda uma análise minuciosa para equilibrar os interesses das partes envolvidas e garantir uma justiça que, ao mesmo tempo, seja eficaz e sensível às nuances familiares.
Conclusão
A Lei 8009/90, ao instituir a impenhorabilidade do bem de família, desempenha um papel crucial na preservação da estabilidade e dignidade das famílias brasileiras. Este arcabouço jurídico estabelece uma salvaguarda vital para a moradia, reconhecendo-a como um elemento essencial para o desenvolvimento e bem-estar do núcleo familiar. Contudo, a recente decisão da Segunda Turma do Tribunal Superior do Trabalho evidencia a complexidade envolvida na aplicação dessa legislação e na ponderação de interesses diversos.
A decisão da Segunda Turma destaca que a impenhorabilidade do bem de família não é uma barreira impenetrável, mas sim um mecanismo que requer uma avaliação cuidadosa das circunstâncias específicas. O reconhecimento de que a sócia, mesmo não residindo no imóvel antes do processo, tinha nele sua morada e não possuía outros bens imóveis.
É importante observar que a proteção não foi estendida à vaga de garagem, indicando que, em certos casos, a lei e a jurisprudência podem delimitar as fronteiras da impenhorabilidade. Esta distinção destaca a necessidade de uma abordagem cautelosa e adaptativa para assegurar que a justiça seja não apenas eficaz, mas também sensível às nuances familiares.
Em última análise, a Lei 8009/90 e casos como o analisado demonstram que a proteção do bem de família é um desafio constante na busca por um equilíbrio entre direitos individuais e responsabilidades financeiras. A decisão da Segunda Turma do TST serve como um lembrete de que, em questões jurídicas complexas, a análise cuidadosa e a consideração das particularidades de cada situação são fundamentais para alcançar uma justiça que respeite e harmonize os interesses das partes envolvidas.
Referência: RRAg-462000-85.2005.5.09.0012
[1] Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba. Pós-Graduado em Direito Trabalho e Direito Previdenciário na Atualidade, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, PUC Minas, Brasil. Pós-graduado em Direito Trabalho e Processo do Trabalho, pela Universidade Estácio de Sá, UNESA, Brasil. Pós-graduado em EAD e Novas Tecnologias, pela Faculdade Educacional da Lapa, FAEL, Brasil. Mestre em Cultura Jurídica: Segurança, Justiça e Direito, pela Universidade de Girona, UDG, Espanha. Doutorando em Direito do Trabalho, pela Universidade de Buenos Aires, UBA, Argentina. Membro da Comissão de Direito do Trabalho da OAB/PR (Gestão 2022-2024). Membro da Comissão Estudos de Compliance e Anticorrupção da OAB/PR (Gestão 2022-2024). Advogado e sócio da Oliveira, Hoffmann & Marinoski – Advogados Associados.